Acordei
com um sentimento desconfortável. Um vazio no peito que era tão familiar e que,
ao mesmo tempo, renunciava a todo o custo. Nos últimos tempos, era demasiado
vulgar sentir-me assim. Sentia-me incompleto. A tristeza colava-se a mim pelo
lado de dentro e acompanhava-me na maior parte dos meus dias. Sentia que andava
há demasiado tempo atrás de coisas que fugiam de mim. Ou, devido à minha apatia,
nem me reconheciam, quase como se eu não existisse, como se eu fosse invisível.
Naquele
dia, decidi sair de casa. Com esforço, mas com um único objectivo. Comprar uma
caixa de música, daquelas muito pequenas com uma manivela de lado. Era apenas o
motivo para sair, caso contrário ficaria ali o dia todo a ver as horas passar
naquele vazio imenso. Um marasmo criado por mim, mas que no fundo detestava.
Saí
para a rua, precisava de ar. Estava muito sol, contrariamente ao meu estado de
espírito. Quase que me sentia irritado por isso. Mas sabia que precisava mesmo
de ir, de disfarçar o que sentia cá dentro com o que pudesse encontrar lá fora.
Respirei
fundo e saí, de repente, para custar menos e para não dar lugar a mais
hesitações. Olhei para ambos os lados da rua e decidi ir a pé, vagueando pelas
ruas desta cidade. Tinha a mente aberta e o que encontrasse seria bem recebido
por mim. Precisava de coisas novas.
Caminhei
durante algum tempo, meio desnorteado, sem ainda saber muito bem se sequer
deveria ter mesmo saído. Parei numa
esplanada de um dos muitos jardins de Lisboa para beber um café. Podia ser que
me trouxesse alguma lucidez.
Foi
aí que a vi, sentada num banco, de costas para mim. Sob aquela imensa árvore,
com uma expressão sereníssima, contemplava o mundo que a rodeava, como se de
uma paisagem se tratasse. As pessoas passeavam despreocupadas com os seus cães.
Casais de namorados sentados sobre a relva entrelaçavam envergonhadamente as
mãos. E ela, ali sozinha, estendia o seu olhar em profundidade até ao limite do
rio.
Ainda
não tinha sequer vislumbrado totalmente a sua face, mas senti uma vontade
imensa em abordá-la. Não fui. Achei despropositado e decidi seguir o meu
caminho.
Às
vezes, acontece-me imaginar pequenas histórias com as pessoas que se cruzam
comigo na rua. No sentido de materializar os meus devaneios, aproximo-me e no
momento em que a intenção de falar surge, elas esfumam-se no ar e desaparecem.
Essas pessoas fazem apenas parte de um cenário que não existe e se deve deixar
como está. Não interferir no desígnio dos deuses. Enfim...
Por
momentos, reencontrei-me com a realidade
e vi algumas pessoas a entrar para um prédio velho. Parecia devoluto. À entrada
um letreiro: “Vestido Sem Côr”. Comprei bilhete e entrei também. Não sabia ao
que ia, mas era precisamente isso que procurava, a incerteza do que estava para
vir.
Por
um corredor demasiado estreito, fui conduzido a uma pequena sala com algumas
cadeiras expostas aleatoriamente. Sentei-me no chão. Pairava um cheiro viciado,
morno, entre o álcool de uma noite retardada e a humidade das paredes. Estava
apreensivo, mas decidi esperar mais um pouco. E eis que se acende um foco no
centro daquele palco improvisado e entra ela, a rapariga que vi sentada no
banco do jardim.
Era
um monólogo que falava de um amor há muito perdido no tempo. A rapariga era
pequena e tinha a doçura de uma criança. Mas trazia mágoa na voz e a força das
suas palavras, a intensidade com que as proferia, parecia fazê-la crescer e num
instante fiquei rendido.
A
sua expressão corporal captava a atenção dos demais e a delicadeza das suas
mãos ilustrava aquilo que ia transmitindo, alternando entre gestos meigos ou
bruscos consoante o seu desejo.
Dei
por mim a pensar que tinha saído para a rua para me abstraír do que estava a
sentir e, naquele momento, naquele espaço que parecia tão improvável, tudo
aquilo de que fugia era-me agora atirado em cara. Parecia de propósito. Pensei
que realmente as coisas não acontecem por acaso. Lentamente, deixei-me levar e
os meus olhos ficaram cobertos por um véu. Involuntariamente, cobri a cara com
as mãos, tentando esconder as lágrimas que iam escorrendo. E foi naquele
momento que percebi que tinha que mudar a minha vida. Parar de saltar de um
lado para o outro e começar a construir algo ali mesmo, nesta cidade. Esta luz
única tinha que significar algo e sabia que era ali que tinha que continuar.
Aplaudi
e saí... ainda mais perdido do que quando entrei.
Continuei
a andar sem sentido pelas ruas estreitas e encontrei uma pequena feira. Algum
artesanato e coisas em segunda mão compunham o espaço e as pessoas sorridentes
convidavam a espreitar as suas bancas. Atentei, procurei, perguntei e consegui.
A minha pequena caixa de música. “La vie en rose” – essa recordação de ti.
Porque era esta a música que tão bem cantavas entre fados e outros choros.
Guardei-a como se de um tesouro se tratasse. Era um bocadinho de ti que poderia
guardar só para mim, sem que tu sequer pudesses saber. Assim poderia girar a
pequena manivela e ter de novo aquele momento só para mim. Reminiscências das
noites em que te contemplei sem nunca ter tido a coragem de declarar o meu
amor.
Regressei
a casa e, apesar de ter cumprido o meu objectivo, continuava com aquele
sentimento estranho. Um vácuo no peito. Afinal, tinha estado sempre sozinho e
em casa ninguém me esperava. Ninguém com quem partilhar aquela tarde, aquele
momento tão meu, mas que assim perdia todo o sentido. Sem partilha, não valia
mesmo a pena. Encolhi os ombros, resignado. Afastei a vontade de chorar, aquela
angústia que insistia em não me largar, e abri uma garrafa de vinho. Tinto.
Alentejano. A par de um maço de cigarros era a minha companhia. Nesta e em
tantas outras noites. Adormeci assim, ao som da caixa de música, contemplando
os desenhos formados entre o reflexo do copo de vinho, uma vela trémula e o
fumo que se estendia até ao tecto. Abandonado à minha própria consciência,
pesada pela responsabilidade de nada fazer para mudar a minha condição. Num
esgar de loucura, lembro-me de ter cuspido as palavras: “Tenho que abandonar o
medo de crescer...”.