06 novembro, 2015

Uma Prega no Tempo

Uma prega no tempo era o que se desejaria para anular certas datas que acentuam a dor e que fazem rever momentos conturbados da vida. Uma suspensão de memória que anularia o peso no peito e que evitaria os sorrisos que temos que ter sempre prontos para mascarar a mágoa.
Próximos estarão os festejos, esses que, outrora sim, foram momentos de festa e que hoje já não fazem assim tanto sentido por não os podermos partilhar com aqueles que partiram. É certo que continuam a fazer algum sentido por aqueles que cá ficam, os que nos instigam a continuar por mais um dia, todos os dias...
E, apesar de continuarmos a sorrir com a mesma genuinidade, são sorrisos um pouco amargos, sorrisos de coração pesado, porque esse coração, tão e tantas vezes cheio, está agora irremediavelmente quebrado. Cheio de cicatrizes que jamais se apagarão com o tempo. O tempo que gentilmente nos dizem, numa mentira piedosa, cura tudo.
Assim, se sugeriu (e bem), num rasgo de génio, que uma prega no tempo seria um mal necessário nesta época que cada vez mais dói, pela ausência daqueles que perdemos e que eternamente amamos. 




17 abril, 2015

Entro numa sala e...

Cadeiras frias e uma mesa recta. Paredes brancas. Alguns livros numa estante e objectos aleatoriamente espalhados sobre a mesa. Talvez uma sala de aula improvisada.
Ouço pessoas lá fora que falam e estendem os seus passos pelo soalho de madeira corrida. Distraio-me a olhar pela janela e imagino o dia que se move lá fora, cheio de sol e de pessoas que passeiam e desenferrujam os sorrisos.
De repente, sou surpreendido pela porta que se abre. Ela entra, vira-se sobre si própria e fecha a porta atrás de si. Inconscientemente, dou por mim a seguir os seus movimentos, talvez atraído pela ausência desses neste espaço inerte. Ela senta-se devagar, recolhe a cadeira contra a mesa, ajustando o corpo ao espaço que lhe cabe. Começa a escrever.  Ajeita o cabelo comprido atrás da orelha. Parece ter os pensamentos dispersos, alienados ao que a rodeia. Não consigo perceber se é feliz ou triste. Tento ver nos seus olhos que, embora grandes, pouco revelam. É estranho tentarmos adivinhar o que os outros são ou como são pela mera observação. Parece que estamos a invadir um pouco da sua privacidade, da sua intimidade. Tentamos adivinhar as suas vidas, as suas rotinas e até os seus momentos de loucura. Mas são apenas meras coisas com que ocupamos o pensamento ao imaginarmos outros mundos, talvez com o intuito de nos distrairmos do nosso próprio mundo e das coisas que nos entediam. Qualquer razão é válida para que consigamos encher a mente, que já se encontra tão cheia de coisas tão vazias.
Volto a olhar para ela e, agora à distância de apenas alguns minutos, parece que a conheço um pouco melhor. Quase que consigo dizer o que vai no seu pensamento, o que pesa no seu coração.





13 novembro, 2014

O Rio


Esperava na sombra das horas deste dia que parecia não ser seu. Ficava ali, à margem, vendo o Rio passar. À distância, o tempo passava esperando o tempo certo de agir, mas não sabia nem quando nem como. 
A água tomava diferentes formas e cores. Por vezes límpida, outras turva. A medo, decidiu entrar. Sentiu o Rio a envolvê-lo como se se tornasse parte de si. Tomava a sua forma e sentia a água colada à sua pele pelo lado de dentro. Diluia-se e reconstruia-se. Reformava-se e conformava-se. Ele acompanhava o fluxo do rio, contendo o seu eu e cada vez mais se fundindo e confundido com aquilo que o envolvia.
O Rio parecia correr em vários sentidos. Isso deixava-o confuso. As águas revoltas corriam em diferentes direcções, desconexas, tendiam a corrigir o curso e o rumo de um passado não assim tão distante.
Saiu então para terra firme. A água estava demasiado agitada, ainda que sob uma névoa que escondia essa agitação, como uma máscara, como um véu que disfarçava e simulava, orientando a atenção para outras distracções. Essa agitação condicionava uma visão clara das coisas e ele sabia que alguma distância dar-lhe-ia certamente a clareza necessária. Sem contrariar qualquer movimento,  caminhava novamente na margem do Rio, com os seus pensamentos à "beira-mágoa". Seguia descalço, para que os seus pés nús conseguissem apreender melhor as texturas, a temperatura e até as pequenas pedras que iam surgindo no caminho.  
Caminhava devagar, como lhe disseram que devia ser. Esperava e respeitava todo aquele ambiente que o rodeava.
Mas eis que encontrou uma barragem. Não podia trespassá-la, embora reconhecesse que não era feita de betão, mas antes de pequenos troncos e ramos de árvore. Reconhecia também que não esteve ali desde sempre. Era uma construção recente. Conseguiu espreitar por entre as suas camadas de galhos e folhas e o seu olhar perfurou a barragem, como os primeiros raios do sol de inverno que trespassam a água fria. Do outro lado, depois desta barreira que o impedia de passar, que escondia e protegia a verdadeira essência do Rio, a água encontrava-se em verdadeira acalmia e tudo parecia sereno.
Deste lado, tudo permanecia tumultuoso, confuso. Ele acreditava que talvez pudesse haver uma razão. Ter-se-ia ele deparado com todas aquelas adversidades por um qualquer motivo que a sua razão desconhecia? Seria ele o escolhido para quebrar aquela barreira, feita em barragem, e passaria assim a habitar na pureza das águas calmas do Rio? Questões acumulavam-se em catadupa. E ele ia sendo empurrado com a força da corrente que o agarrava e o prendia contra a barragem, que ora o instigava ora o demovia. Valeria a pena?

21 agosto, 2014

Stay Awake

Acordo num repente dormente. Acordo assustada com a força das palavras que me apresso a registar para que não fiquem perdidas no tempo, no momento em que me fizeram acordar de um sonho desconexo, que não reconheço. Não agora, que tudo me parece distante, num passado angustiante que me asfixiava e me anulava daquilo que sou. Um passado que me dissociava do que é meu, que me quebrava em bocados e que me fez desacreditar na vida das coisas e nas coisas da minha vida. 
Acordei de rompante com estas palavras repetidas no pensamento, num tormento. Lamento, mas quero acreditar que são apenas reflexos, sombras do passado, do momento marcado. Acabou. Ficou para trás. Onde deve estar, aliás. Coisas que nem quero lembrar. Quero apenas arrumar, como parte da minha história, na minha memória. Mas é inevitável, porque as palavras são fortes e acompanham o meu dia até agora. Como um cão preto, amigo fiel, cruel. Fica aí pequeno, despercebido, a um canto recolhido, apenas fazendo o teu papel. Para que não me esqueça dos dias sombrios, com frio, em que os sorrisos eram fechados e os abraços cansados.
Relembro o que ficou registado, assumido e gravado em papel digital. Foi assim: "Demente, sozinha. Tremendo, temendo este medo tremendo que é perder-me de mim".



20 abril, 2014

Cacilheiro

Cacilheiro que invadiste as águas do Tejo
Qual gigante trazido nas tormentas de outras marés.
Tu, que aqui entraste num torpor de desejo
Assim, tão cheio daquilo que és.
Devolve-me o meu rio, as minhas águas, a minha calçada
Devolve-me o olhar triste dos corvos, as ruelas e os fados de uma voz calada.
Devolve-me o chão que piso a passo,
Devolve a ternura do meu abraço.
Devolve esta luz que é minha e que vieste roubar.
Devolve-me estes bairros de flores, as vielas estreitas, devolve-me o ar.
Não te permito que aqui guardes os teus segredos, as tuas mágoas.
Vai-te sem deixar rasto, sem deixar riscos no reflexo destas águas.
Aqui não há lugar para as tuas lágrimas, para as tuas dores e temores.
Não há lugar para os teus passados e pecados e muito menos para os teus tornados.
Leva daqui o teu sal, leva daqui o teu mal.
Deixa-me sozinha, deixa-me a saudade.
Deixa-me aqui, onde pertenço, onde me encontro, 
Onde sou eu no meio da minha cidade.



11 junho, 2013

Unspoken Words

Saio ao fim da tarde, deixando para trás a rotina dos dias. Liberto-me daquele espaço onde tudo acontece à mesma hora da mesma forma, com as mesmas pessoas de expressões fechadas. É por isso que gosto do momento em que atravesso aquela porta, reentrando na minha realidade, aberta a um mar infindável de possibilidades. A partir dali, tudo passa a ser novamente imprevisível. 
Caminhei até ao metro, tinha um encontro junto ao rio... Entrei para a claustrofobia viciada do subsolo. O painel alertava para a redução a três carruagens, como se o bilhete passasse a ser mais barato por isso. Entrei e sentei-me. Como é meu costume, fiquei a observar as pessoas que se iam distribuindo pelos lugares à minha volta. É então que, por entre corpos que vêm e vão no reboliço das paragens, se senta um casal de velhinhos à minha frente. 
Ela tão magrinha e pequenina, ele enorme e com um ar docemente bruto. Ela tão bem posta e arrumadinha, ele que ocupava o espaço dele e parte do dela. 
A senhora, com um lenço de seda à volta do pescoço, procurava um papel na malinha preta que tinha depositada sobre o colo e rosnava sons imperceptíveis, enquanto chupava a sua dentadura como se fosse um rebuçado. O senhor, com um chapéu antigo sobre a cabeça, tendo um aparelho auditivo, dava a entender que não percebia nada do que ela ia dizendo. Mas ia acenando com uma ternura que transmitia que, no fundo, não havia nenhuma palavra daquele tão estranho dialecto que não soubesse já de cor. Tinham uma cumplicidade tal que fazia inveja a quem soubesse atentar a todos aqueles sinais. Mas que, naquele preciso momento, passava despercebido ao comum dos mortais e se desenrolava agora diante dos meus olhos, tal como num quadro vivo.
Eu, atenta, observava agora as suas mãos. Bodas de prata. As dele, dispostas sobre cada um dos seus joelhos, deveriam ser quase o dobro das dela, mas se por ventura se encontrassem, seria em perfeita harmonia. 
As dela permaneciam tranquilas, arrumadas lado a lado sobre a malinha preta fechada. E foi aqui que fiquei absorvida pelo pormenor daquele cenário. O pormenor das mãos daquela velhinha que devia andar na casa dos oitenta. A pele quase transparente de tão fina, as veias por onde corria um sangue já cansado e os ossos salientes acompanhavam a delicadeza daqueles gestos imóveis... 
Fiquei com o olhar preso sobre aquelas mãos que, não sendo as mesmas, eu tão bem reconhecia. Impressionante...
Permaneci assim durante algum tempo até que, chegada a sua paragem destino, levantaram-se e a senhora, com um sorriso sincero e com aquela cor de olhos (uns olhos cor de chuva), pergunta com uma educação de outros tempos: "Dá-me licença?". Devolvi o sorriso sem proferir qualquer palavra e segui viagem. 
Saí e fui andando, devagar, até à margem do rio onde vimos os barcos da última vez. Senti o sol a bater-me na cara e fechei os olhos. Respirei fundo três vezes. E o vento levantou e levou de mim tudo o resto deixando só aquele momento, que me ficará na memória como uma fotografia.
Talvez um dia também tu estejas ao meu lado e, num gesto de cumplicidade inigualável, consigas compreender os meus dialectos imperceptíveis...




23 maio, 2013

Caixa de Música


Acordei com um sentimento desconfortável. Um vazio no peito que era tão familiar e que, ao mesmo tempo, renunciava a todo o custo. Nos últimos tempos, era demasiado vulgar sentir-me assim. Sentia-me incompleto. A tristeza colava-se a mim pelo lado de dentro e acompanhava-me na maior parte dos meus dias. Sentia que andava há demasiado tempo atrás de coisas que fugiam de mim. Ou, devido à minha apatia, nem me reconheciam, quase como se eu não existisse, como se eu fosse invisível.
Naquele dia, decidi sair de casa. Com esforço, mas com um único objectivo. Comprar uma caixa de música, daquelas muito pequenas com uma manivela de lado. Era apenas o motivo para sair, caso contrário ficaria ali o dia todo a ver as horas passar naquele vazio imenso. Um marasmo criado por mim, mas que no fundo detestava.
Saí para a rua, precisava de ar. Estava muito sol, contrariamente ao meu estado de espírito. Quase que me sentia irritado por isso. Mas sabia que precisava mesmo de ir, de disfarçar o que sentia cá dentro com o que pudesse encontrar lá fora.
Respirei fundo e saí, de repente, para custar menos e para não dar lugar a mais hesitações. Olhei para ambos os lados da rua e decidi ir a pé, vagueando pelas ruas desta cidade. Tinha a mente aberta e o que encontrasse seria bem recebido por mim. Precisava de coisas novas.
Caminhei durante algum tempo, meio desnorteado, sem ainda saber muito bem se sequer deveria ter mesmo saído.  Parei numa esplanada de um dos muitos jardins de Lisboa para beber um café. Podia ser que me trouxesse alguma lucidez.
Foi aí que a vi, sentada num banco, de costas para mim. Sob aquela imensa árvore, com uma expressão sereníssima, contemplava o mundo que a rodeava, como se de uma paisagem se tratasse. As pessoas passeavam despreocupadas com os seus cães. Casais de namorados sentados sobre a relva entrelaçavam envergonhadamente as mãos. E ela, ali sozinha, estendia o seu olhar em profundidade até ao limite do rio.
Ainda não tinha sequer vislumbrado totalmente a sua face, mas senti uma vontade imensa em abordá-la. Não fui. Achei despropositado e decidi seguir o meu caminho.
Às vezes, acontece-me imaginar pequenas histórias com as pessoas que se cruzam comigo na rua. No sentido de materializar os meus devaneios, aproximo-me e no momento em que a intenção de falar surge, elas esfumam-se no ar e desaparecem. Essas pessoas fazem apenas parte de um cenário que não existe e se deve deixar como está. Não interferir no desígnio dos deuses. Enfim...
Por momentos, reencontrei-me com  a realidade e vi algumas pessoas a entrar para um prédio velho. Parecia devoluto. À entrada um letreiro: “Vestido Sem Côr”. Comprei bilhete e entrei também. Não sabia ao que ia, mas era precisamente isso que procurava, a incerteza do que estava para vir.
Por um corredor demasiado estreito, fui conduzido a uma pequena sala com algumas cadeiras expostas aleatoriamente. Sentei-me no chão. Pairava um cheiro viciado, morno, entre o álcool de uma noite retardada e a humidade das paredes. Estava apreensivo, mas decidi esperar mais um pouco. E eis que se acende um foco no centro daquele palco improvisado e entra ela, a rapariga que vi sentada no banco do jardim.
Era um monólogo que falava de um amor há muito perdido no tempo. A rapariga era pequena e tinha a doçura de uma criança. Mas trazia mágoa na voz e a força das suas palavras, a intensidade com que as proferia, parecia fazê-la crescer e num instante fiquei rendido.
A sua expressão corporal captava a atenção dos demais e a delicadeza das suas mãos ilustrava aquilo que ia transmitindo, alternando entre gestos meigos ou bruscos consoante o seu desejo.
Dei por mim a pensar que tinha saído para a rua para me abstraír do que estava a sentir e, naquele momento, naquele espaço que parecia tão improvável, tudo aquilo de que fugia era-me agora atirado em cara. Parecia de propósito. Pensei que realmente as coisas não acontecem por acaso. Lentamente, deixei-me levar e os meus olhos ficaram cobertos por um véu. Involuntariamente, cobri a cara com as mãos, tentando esconder as lágrimas que iam escorrendo. E foi naquele momento que percebi que tinha que mudar a minha vida. Parar de saltar de um lado para o outro e começar a construir algo ali mesmo, nesta cidade. Esta luz única tinha que significar algo e sabia que era ali que tinha que continuar.
Aplaudi e saí... ainda mais perdido do que quando entrei.
Continuei a andar sem sentido pelas ruas estreitas e encontrei uma pequena feira. Algum artesanato e coisas em segunda mão compunham o espaço e as pessoas sorridentes convidavam a espreitar as suas bancas. Atentei, procurei, perguntei e consegui. A minha pequena caixa de música. “La vie en rose” – essa recordação de ti. Porque era esta a música que tão bem cantavas entre fados e outros choros. Guardei-a como se de um tesouro se tratasse. Era um bocadinho de ti que poderia guardar só para mim, sem que tu sequer pudesses saber. Assim poderia girar a pequena manivela e ter de novo aquele momento só para mim. Reminiscências das noites em que te contemplei sem nunca ter tido a coragem de declarar o meu amor.
Regressei a casa e, apesar de ter cumprido o meu objectivo, continuava com aquele sentimento estranho. Um vácuo no peito. Afinal, tinha estado sempre sozinho e em casa ninguém me esperava. Ninguém com quem partilhar aquela tarde, aquele momento tão meu, mas que assim perdia todo o sentido. Sem partilha, não valia mesmo a pena. Encolhi os ombros, resignado. Afastei a vontade de chorar, aquela angústia que insistia em não me largar, e abri uma garrafa de vinho. Tinto. Alentejano. A par de um maço de cigarros era a minha companhia. Nesta e em tantas outras noites. Adormeci assim, ao som da caixa de música, contemplando os desenhos formados entre o reflexo do copo de vinho, uma vela trémula e o fumo que se estendia até ao tecto. Abandonado à minha própria consciência, pesada pela responsabilidade de nada fazer para mudar a minha condição. Num esgar de loucura, lembro-me de ter cuspido as palavras: “Tenho que abandonar o medo de crescer...”.



22 março, 2013

ausência de um corpo

Hoje não acordaste ao meu lado. Não partilhámos a mesma cama. Não sentiste o meu cheiro morno de madrugada, nem te aninhaste ao meu corpo quente moldado à noite que agora acaba.
Não houve sexo antes de dormir. Nem tempo para sonhos distantes. Não houveram dois corpos num só. Nem depois, nem antes.
Há muito tempo que não existe essa comunhão. Esse esquecer do mundo lá fora para viver um mundo que só a nós pertence. Não há disponibilidade. Temporal, emocional, sei lá ...
Mas apesar de não partilharmos a mesma cama, não há dia em que não o lamentes, não há noite em que não me desejes. Ansias pelo gosto adocicado dos meus lábios, pelo conforto inconfundível dos meus braços. Ansias por esse momento em que te libertas de tudo, do mundo, e te encontras finalmente. Reconheces-me e reconheces-te e não sabes o que fazer com isso tudo. Que é tanto e tão maior do que podes suportar. A grandeza das coisas assusta-te. Silêncio é o que tens para oferecer, porque o medo é soberano e prevalece sobre o que de mais evidente há no meio de ti.

15 fevereiro, 2013

Sangue Amargo


Senti um leve sabor a sangue na boca. Não sei de onde vem, se de um lábio cortado ou de uma mágoa distante. Levo os dedos à boca, como se o toque levasse ao reconhecimento. Em vão. O sabor amargo de que desconheço a origem é-me familiar. Passo a língua devagar, saboreio, comprimo docemente os lábios num afago que parece acalmar a ferida inexistente. 
Distraio-me com a luz que aparece no visor. É uma mensagem tua. Revelas o desejo em me ter, esse desejo jamais saciado. Respondo com um sorriso que nunca revela o que sinto. Ficas sempre sem saber se os meus desejos são os teus, se as  minhas vontades querem encontrar as linhas do teu corpo. 
Frente ao espelho, a uma proximidade que me parece fundir ao reflexo, comprovo que nada existe para que eu possa sentir este sabor a sangue. Talvez não seja meu, então. Talvez seja o sabor do teu sangue que sinto. Um sabor morno e metálico. Talvez de uma ferida ainda aberta, quem sabe se infligida por  mim. Essa ferida que se sente a cada vez que lhe toco, a cada vez que os meus lábios procuram os teus. A cada vez que os meus dedos tocam a tua pele quente do sangue que te corre nas veias, esse que agora sinto na minha boca sem entender a razão. 
Memórias de ti que deixas em mim para que eu não te possa esquecer.



25 outubro, 2012

Histórias de aeroporto #1


Parou de chover. Olho pela janela e consigo ver o céu azul que habita lá em cima. Espreito por entre as nuvens escuras e densas alternadas por outras mais leves que desenham rabiscos envergonhados nestes dias cinzentos.
Da minha janela vejo ao fundo o aeroporto. É lá que nos encontraremos daqui a pouco. Este pouco que parece tanto nas horas da tua ausência.
As malas, deixei-as ontem à noite em tua casa e pedi que mas levasses para eu poder ir directamente do trabalho sem ter que fazer paragens desnecessárias, pois a vontade em te  encontrar é mais que muita. Será tudo simples e directo.
Os últimos pormenores foram acertados ontem à noite por entre lençóis aquecidos pelos nossos corpos e por entre promessas que já foram esquecidas.
Hoje fugiremos para outro destino. Um mundo cheio de possibilidades, longe desta realidade viciada que destrói e consome as nossas vidas. Só tu e eu noutro lugar qualquer.
Chegado o momento, saio a correr para o aeroporto. Consigo chegar à hora combinada. Ainda não cá estás. Mando uma mensagem que fica pendente. Começo então despreocupadamente a pensar em possibilidades. Chove imenso lá fora. Deves estar preso no trânsito. Ficaste sem bateria, impossibilitado de me avisar.
Passados vinte minutos, as hipóteses mantêm-se, mas o tom dos meus pensamentos modifica-se. É agravado. Penso que talvez possas ter desistido. Na verdade, a tua vida é outra, muito centrada nas tuas coisas, na tua vida com as tuas pessoas. E eu não sou uma delas, nem faço parte do teu círculo de amigos. Criei a ilusão de que poderíamos fazer uma viagem, deixando tudo para trás. Mesmo que apenas por uns dias. A vivência de uma história de amor, mesmo que efémera.
No fundo, sabia que a tua posição jamais iria mudar. Nunca abdicarias da tua vida por mim, nem me levarias para dentro dela. No fundo, ainda bem que assim era. Algo que sabemos que não é adquirido é algo por que lutamos com mais cuidado, com mais vontade. E eu sabia que se perdesse o sentido disso, iria aborrecer-me e a magia que nos mantem aqui iria desaparecer. Então, passarias a ser mais um, como tantos outros que passaram pela minha vida. Não queria olhar para ti dessa forma. Eras um desafio e não queria que isso acontecesse contigo. Não contigo. A minha ilusão preferida. Queria fazê-la durar.
Os minutos foram passando e fui tomando consciência que tudo aquilo não passara de uma brincadeira de meninos. Respirei fundo como que a ganhar força para me erguer do banco onde me mantinha sentada há mais de meia hora. O meu mundo tornou-se novamente cinzento e não valia a pena continuar ali.
Olhei uma última vez para o telemóvel. Nada. A mensagem continuava pendente. Levantei-me e comecei a caminhar em direcção à saída. A saída que era a entrada de volta para a minha realidade. Respirei fundo de novo, desta vez resignada.
Encostei a palma da mão quente contra o letreiro que dizia push. E foi aí que senti o meu braço esquerdo a ser puxado novamente para dentro. Eras tu. Com esse sorriso enorme e despreocupado que logo me contagiou. Sorri também e disse que ia apenas fumar um cigarro. Eu que nem fumo, tu que nem te lembraste disso. Disse-te que também eu tinha acabado de chegar. Sim, vamos fugir, respondi.
Senti que talvez essa viagem fosse um erro, mas resolvi, eu própria, não desistir. Preferi arrepender-me depois, já com uma história para contar...


21 outubro, 2012

Entre a paragem e a regressão

"How could it be worse than not moving?
... maybe go backwards."
                                                       Awake





Tenho tido insónias quase todos os dias. Fico cansada, adormeço demasiado cedo e depois acordo sempre de madrugada. A essa hora não há ninguém para falar, estão todos entregues ao mundo onírico.
A cidade adormecida não oferece muitas opções. Quero sair, quero muito sair. Não consigo. Fico fechada em casa agarrada à inércia dos dias. Vejo as horas e os minutos a passar. Adormeço e acordo muitas vezes no intervalo de coisa nenhuma. Estou estagnada. A minha vida parou no tempo e no espaço. Não acontece absolutamente nada. 
Tudo permanece insípido. Continuo sem gosto, sem prazer. Dizem-me que tenho que sair, para me divertir, mas a verdade é que, a cada vez que o faço, tal não acontece. São apenas repetições mais e mais falaciosas do que já foi dito e feito. E as promessas feitas sem sentido, as garantias que no momento a seguir perdem toda e qualquer validade, as palavras que de honra nada têm. A confiança e a crença no outro esfumam-se no ar, por entre mentiras e nevoeiro. Já não existem pessoas genuínas, é tudo uma farsa viciada e coberta por roupas bonitas, perfumes enebriantes e sorrisos forçados. Um rol de vidas de faz de conta em que no fim nada sobra, nem uma mão onde se agarrar.
Não sei o que será preferível, uma vida assente em cinismo e momentos falaciosos, ou uma vida estagnada cuja palavra ainda vale muito ou quase tudo...

03 outubro, 2012

Momento


Estou imóvel. Uma tranquilidade habita em mim como há muito não acontecia. O meu corpo nu, coberto de um odor ainda morno, está de costas para o teu. Os teus braços envolvem-me de uma forma estranhamente confortável. Através da janela aberta, sinto a leve brisa que de quando em quando se faz sentir, fazendo lembrar que o mundo lá fora ainda se move. Alheio-me. Neste lusco-fusco que anuncia a aproximação da noite, fito o branco do tecto por onde passam luzes fugidias provenientes dos carros que deslizam sobre a calçada. Os teus dedos passeiam na superfície da minha pele e movem-se em festas mais e mais espaçadas. Deixas-te ir devagar e abandonas-te mesmo ao meu lado. Estás tão colado a mim quanto possível. A tua respiração torna-se mais pesada. Sorrio. Sentes que daqui nenhum mal virá. Isso assusta-te, faz-te duvidar depois de um passado tantas vezes amargo. Aqui e neste preciso momento, sentes a tranquilidade necessária para te deixares levar para outro lado qualquer. Permaneço imóvel. Volto a sentir a brisa que envolve o quarto e atenua o calor húmido dos corpos. Respiro fundo e sinto uma calma imensa. Era mesmo disto que estava a precisar. Descansar um pouco do resto do mundo num momento tão efémero quanto este. Fico assim... só assim a desfrutar a ausência das coisas. Sem sentimentos. Sem compromissos. Dois corpos apenas, abraçados num gesto tão simples. Um gesto que por vezes demora tanto a chegar. Movo-me devagar. Acordas sem saber quanto tempo passou. Ajustamos a posição, tão docemente quanto possível, para não acordar o momento. Libertamo-nos em meios sorrisos e olhares transparentes, despidos de qualquer preconceito. Livre, fecho os olhos e ouço este silêncio que diz tanto...

31 agosto, 2012

Once In A Blue Moon

Porque a R. disse que hoje vai haver uma Lua Azul no céu...




... aqui vai uma musiquinha com a participação dos meus queridos LadySmith :)

25 agosto, 2012

Como vou eu esquecer-te...

Como uma ilha... sozinha.
É assim que me sinto sem ti... neste dia em que faz 34 anos desde que me puseste no mundo. Sinto a tua falta como nunca. Um beijinho onde quer que estejas... e que hoje seja perto de mim.

22 agosto, 2012

The fog & the lies


... abro os olhos e não consigo ver nada. Está demasiado nevoeiro para que consiga vislumbrar o que quer que seja. Ouço vozes imperceptíveis que se repetem e sobrepõem sem qualquer sentido lógico. Não as consigo descodificar. Não sei se chegam até mim através de uma parede, se estão apenas longe, ou se os meus sentidos não estão aptos ao que me parecem ser idiomas disconexos.
Franzo a testa e tento olhar por entre este nevoeiro cerrado. Vejo algumas sombras disformes. Tudo me parece confuso e difuso. Parece um sonho, mas não é. Tenho a certeza. É a realidade.
Consigo olhar para as minhas mãos. Consigo perceber que estou ali fisicamente, mas não consigo ver mais nada para além disso. Não caminho. Permaneço imóvel no mesmo sítio, como que a tentar perceber o ambiente que me rodeia, os contornos do espaço e das coisas que nele se encontram. O ar é demasiado denso. Nem uma brisa corre, nada que faça dissipar este ar pesado e viciado. E os meus olhos não têm aptidão suficiente para me fazer mover confiantemente num lugar assim. Fico condicionada.
Decido avançar aos poucos, pé ante pé, e começo lentamente a vislumbrar pequenas coisas, pequenos indícios. Peças de um puzzle que ainda não montei. Mas nenhuma das partes parece encaixar na outra. Parece algo mal construído, cheio de pontas soltas.
Continuo a caminhar calmamente e vou guardando nas mãos partes do que vou encontrando, daquilo que vai chegando até mim. Coisas que não procuro, mas que vêm ao meu encontro. Até que, por fim, algumas dessas coisas me começam a parecer familiares. Começo a reconhecer certas palavras, expressões, momentos, imagens. Percebo então que este nevoeiro cerrado é composto de partículas minúsculas desses pedaços de coisas. Que se foram desfazendo ao longo do tempo e que agora tornam a minha visão turva.
Até que percebo que são tudo pedaços de mentiras. Difundem-se no ar. Toldam o pensamento dos demais. Não são as minhas mentiras. São as tuas. E as tuas. E as tuas.
Seu eu minto? Claro que sim. Todos mentimos. É inerente ao ser humano. Mas eu magoo com verdades, não com mentiras. E as mentiras têm diferentes pesos. As minhas esfumam-se no ar no momento imediato em que saem da minha boca. São irrelevantes. Estas, de que falo aqui, são tão pesadas que adensam o ar, tornando-o irrespirável.
Sei que a vida não é só feita de mentiras, mas este ambiente está tão cheio delas que se torna impossível ver mais além. Por melhor que seja uma pessoa, às vezes basta uma atitude má, para que tudo se transforme. Pior é quando essas atitudes se repetem infindavelmente. E assim se seguem os incontornáveis pedidos de desculpas. Como borrachas gigantes que já não sabem apagar o que ficou para trás, porque as desculpas não anulam o passado.
Faço mais um esforço. Ponho uns óculos especiais, uma espécie de visão nocturna. Assim, já consigo ter alguma noção de formas e cores. Consigo ver alguns sorrisos e deixo-me deslumbrar por isso. Até parece que está tudo bem, que tudo se dissipou e a minha visão volta a ser clara e distinta. Volto a sorrir também, volto a aproximar-me e volto esquecer-me desse passado que não é assim tão distante. Volto a acreditar que tudo é possível. Volto a confiar.  E, de repente, levo uma paulada na cabeça que nem sei de onde vem. E então...
... abro os olhos e não consigo ver nada. Está demasiado nevoeiro para que consiga vislumbrar o que quer que seja...


19 agosto, 2012

O outro lado da minha cama #2


Se eu pudesse suspendia o mundo durante cinco minutos. Precisamente... agora. Neste agora em que eu ainda estou deitada na minha cama, a lutar contra o dia que se adivinha igual a todos os outros.
Suspendia eu o tempo e voltava-me para o outro lado da cama, que agora se encontra vazio, e encontrar-te-ia ainda entregue ao mundo do sonhos. Sentiria o meu corpo morno contra o teu. Dar-te-ia um beijo na nuca e respirar-te-ia devagar. Até acordares docemente com um sorriso e me tomares nos teus braços. Assim, daquela forma sôfrega que só tu sabes fazer, como se fosse a última vez. Como se fosse sempre a última vez. Ficaríamos só assim, os dois, à parte do resto do mundo.
Cinco minutos de ilusão bastariam. Cinco minutos em que me sentiria novamente feliz e desejada. Cinco minutos que outrora tive tantas vezes
E agora, passados cinco minutos de pura ilusão, está na hora de me levantar e de enfrentar a crua realidade dos dias. Assim, abandonando o meu lado da cama que ficará como o teu, vazio como um amor esquecido no tempo.

14 agosto, 2012

Beautiful Rain #2






Sabe-me tão bem voltar a ouvir a chuva a cair...
Espelha o meu estado de espírito.
Na calma do meu refúgio, vejo a leve agitação das folhas verdes como quem quer beber as gotas de água tépida. As demais descolam-se e vão humedecendo a sede das coisas. 
Que paz de espírito... quase surreal.

13 agosto, 2012

Unknown Thought


Olho para as minhas mãos. Tenho os dedos todos riscados, qual criança que faz os seus primeiros desenhos.
Riscos pretos. Restos de palavras. Coisas que ficam por escrever. Laivos de tinta negra que marca a ponta dos meus dedos, sem sentido como os pensamentos que surgem devagar.
Sentimentos que fogem por não quererem ficar registados no papel, por não quererem surgir de forma precisa, palpável para não serem relembrados. Ficam apenas disformes cobrindo as impressões digitais. Sem identidade definida. Riscos pretos para me lembrar que, não querendo existir de uma forma real, nunca foram mera ilusão.


08 agosto, 2012

Dos que saem sem bater a porta


Não entendo as pessoas que surgem, que mostram o seu melhor lado, que dizem que estarão lá para mim, que o fazem genuinamente (quero acreditar) e que depois saem sem bater a porta.
Vão-se embora assim, sem palavras, sem razões, sem desculpas. Deixando a porta aberta atrás de si. Vão de mãos vazias sem qualquer recordação. Sem uma explicação, um motivo, uma queixa que me faça entender o sentido da sua ausência.
Indiferentes, seguem o seu caminho como se eu nunca tivesse existido. Completamente invisível, inexistente, quase surreal. Não tenho importância, nunca a ganhei, nem nunca foi esse o meu interesse. Pois a amizade não é feita de interesses.
Abdicam livre e despreocupadamente, de uma forma tão desapegada que nem uma palavra surge. Nenhum som fica sequer no esquecimento.
Vão, sem nunca dizer adeus, sem nunca bater a porta...

07 agosto, 2012

Lei da Compensação


Se para cada coisa boa que acontece, surge sempre outra má para nos lembrar que não podemos estar felizes durante muito tempo, porque é que o seu inverso não acontece? Porque é que o estado normal das coisas é sempre mau? Porque é que não pode ser o contrário?
Calculo que a minha felicidade e o bem estar que atingi nos últimos dias tenha irritado os deuses, que prontamente trataram de engendrar algo que me deitasse abaixo. Pois conseguiram. Uma série de maus sentimentos surgiram no meu peito. Outros tantos pensamentos negativos atravessaram a minha mente. Fiquei fisicamente indisposta. Mas não quero estar assim. Fico triste por estar triste. Decido que é preferível voltar aos sorrisos e à leveza de espírito.
Pois é, deuses maléficos. Empurraram-me, mas não me derrubaram. E se tentarem de novo, até posso cair, mas tornarei a levantar-me.
Por mais escassos e curtos que sejam os momentos bons, eu dou-lhes o devido valor e agarro-me a isso com unhas e dentes. São eles que me injectam a energia necessária, que me fortalecem. São eles que ocupam aquilo que me compõe e que não deixam espaço para o que não quero para mim.
Hoje, venceu o bem! J