... abro os olhos e não consigo ver nada. Está demasiado
nevoeiro para que consiga vislumbrar o que quer que seja. Ouço vozes
imperceptíveis que se repetem e sobrepõem sem qualquer sentido lógico. Não as
consigo descodificar. Não sei se chegam até mim através de uma parede, se estão
apenas longe, ou se os meus sentidos não estão aptos ao que me parecem ser
idiomas disconexos.
Franzo a testa e tento olhar por entre este nevoeiro
cerrado. Vejo algumas sombras disformes. Tudo me parece confuso e difuso. Parece
um sonho, mas não é. Tenho a certeza. É a realidade.
Consigo olhar para as minhas mãos. Consigo perceber que
estou ali fisicamente, mas não consigo ver mais nada para além disso. Não
caminho. Permaneço imóvel no mesmo sítio, como que a tentar perceber o ambiente
que me rodeia, os contornos do espaço e das coisas que nele se encontram. O ar
é demasiado denso. Nem uma brisa corre, nada que faça dissipar este ar pesado e
viciado. E os meus olhos não têm aptidão suficiente para me fazer mover
confiantemente num lugar assim. Fico condicionada.
Decido avançar aos poucos, pé ante pé, e começo lentamente a
vislumbrar pequenas coisas, pequenos indícios. Peças de um puzzle que ainda não
montei. Mas nenhuma das partes parece encaixar na outra. Parece algo mal
construído, cheio de pontas soltas.
Continuo a caminhar calmamente e vou guardando nas mãos
partes do que vou encontrando, daquilo que vai chegando até mim. Coisas que não
procuro, mas que vêm ao meu encontro. Até que, por fim, algumas dessas coisas
me começam a parecer familiares. Começo a reconhecer certas palavras, expressões,
momentos, imagens. Percebo então que este nevoeiro cerrado é composto de
partículas minúsculas desses pedaços de coisas. Que se foram desfazendo ao
longo do tempo e que agora tornam a minha visão turva.
Até que percebo que são tudo pedaços de mentiras.
Difundem-se no ar. Toldam o pensamento dos demais. Não são as minhas mentiras.
São as tuas. E as tuas. E as tuas.
Seu eu minto? Claro que sim. Todos mentimos. É inerente ao
ser humano. Mas eu magoo com verdades, não com mentiras. E as mentiras têm
diferentes pesos. As minhas esfumam-se no ar no momento imediato em que saem da
minha boca. São irrelevantes. Estas, de que falo aqui, são tão pesadas que
adensam o ar, tornando-o irrespirável.
Sei que a vida não é só feita de mentiras, mas este ambiente
está tão cheio delas que se torna impossível ver mais além. Por melhor que seja
uma pessoa, às vezes basta uma atitude má, para que tudo se transforme. Pior é
quando essas atitudes se repetem infindavelmente. E assim se seguem os
incontornáveis pedidos de desculpas. Como borrachas gigantes que já não sabem
apagar o que ficou para trás, porque as desculpas não anulam o passado.
Faço mais um esforço. Ponho uns óculos especiais, uma
espécie de visão nocturna. Assim, já consigo ter alguma noção de formas e
cores. Consigo ver alguns sorrisos e deixo-me deslumbrar por isso. Até parece
que está tudo bem, que tudo se dissipou e a minha visão volta a ser clara e
distinta. Volto a sorrir também, volto a aproximar-me e volto esquecer-me desse
passado que não é assim tão distante. Volto a acreditar que tudo é possível.
Volto a confiar. E, de repente, levo uma
paulada na cabeça que nem sei de onde vem. E então...
... abro os olhos e não consigo ver nada. Está demasiado
nevoeiro para que consiga vislumbrar o que quer que seja...
Sem comentários:
Enviar um comentário