Saio ao fim da tarde, deixando para trás a rotina dos dias.
Liberto-me daquele espaço onde tudo acontece à mesma hora da mesma forma, com
as mesmas pessoas de expressões fechadas. É por isso que gosto do momento em
que atravesso aquela porta, reentrando na minha realidade, aberta a um mar
infindável de possibilidades. A partir dali, tudo passa a ser novamente
imprevisível.
Caminhei até ao metro, tinha um encontro junto ao rio...
Entrei para a claustrofobia viciada do subsolo. O painel alertava para a redução
a três carruagens, como se o bilhete passasse a ser mais barato por isso.
Entrei e sentei-me. Como é meu costume, fiquei a observar as pessoas que se iam
distribuindo pelos lugares à minha volta. É então que, por entre corpos que vêm
e vão no reboliço das paragens, se senta um casal de velhinhos à minha frente.
Ela tão magrinha e pequenina, ele enorme e com um ar
docemente bruto. Ela tão bem posta e arrumadinha, ele que ocupava o espaço dele
e parte do dela.
A senhora, com um lenço de seda à volta do pescoço, procurava
um papel na malinha preta que tinha depositada sobre o colo e rosnava sons
imperceptíveis, enquanto chupava a sua dentadura como se fosse um rebuçado. O
senhor, com um chapéu antigo sobre a cabeça, tendo um aparelho auditivo, dava a
entender que não percebia nada do que ela ia dizendo. Mas ia acenando com uma
ternura que transmitia que, no fundo, não havia nenhuma palavra daquele tão
estranho dialecto que não soubesse já de cor. Tinham uma cumplicidade tal que
fazia inveja a quem soubesse atentar a todos aqueles sinais. Mas que, naquele
preciso momento, passava despercebido ao comum dos mortais e se desenrolava
agora diante dos meus olhos, tal como num quadro vivo.
Eu, atenta, observava agora as suas mãos. Bodas de prata. As
dele, dispostas sobre cada um dos seus joelhos, deveriam ser quase o dobro das
dela, mas se por ventura se encontrassem, seria em perfeita harmonia.
As dela permaneciam tranquilas, arrumadas lado a lado sobre a
malinha preta fechada. E foi aqui que fiquei absorvida pelo pormenor daquele
cenário. O pormenor das mãos daquela velhinha que devia andar na casa dos
oitenta. A pele quase transparente de tão fina, as veias por onde corria um
sangue já cansado e os ossos salientes acompanhavam a delicadeza daqueles
gestos imóveis...
Fiquei com o olhar preso sobre aquelas mãos que, não sendo as
mesmas, eu tão bem reconhecia. Impressionante...
Permaneci assim durante algum tempo até que, chegada a sua
paragem destino, levantaram-se e a senhora, com um sorriso sincero e com aquela
cor de olhos (uns olhos cor de chuva), pergunta com uma educação de outros
tempos: "Dá-me licença?". Devolvi o sorriso sem proferir qualquer
palavra e segui viagem.
Saí e fui andando, devagar, até à margem do rio onde vimos os
barcos da última vez. Senti o sol a bater-me na cara e fechei os olhos.
Respirei fundo três vezes. E o vento levantou e levou de mim tudo o resto
deixando só aquele momento, que me ficará na memória como uma fotografia.
Talvez um dia também tu estejas ao meu lado e, num gesto de cumplicidade inigualável, consigas compreender os meus dialectos
imperceptíveis...
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