Paralelo #2 - daqui
Logo pela manhã, chego à entrada do teu
quarto, aquele que um dia foi nosso. Entreabro a porta, que precisa de arranjo
e, como já é habitual, range. Range o suficiente para te acordar. Tens o olhar
meio perdido, talvez pelo sono, ou talvez não me consigas vislumbrar porque
estou em contraluz. Ficas parado durante algum tempo, como que para ter a
certeza da minha presença e eu permaneço imóvel para não te assustar.
Disseram-me que é melhor assim. Olhas-me com uma incerteza estranha, como se a
imagem que vês parecesse focar e desfocar alternadamente, sem te dar tempo para
conseguires precisar o que vês, sem te dar tempo de me reconheceres. Foi assim
nas primeiras vezes, nas primeiras manifestações, naquelas em que nem eu queria
acreditar. Aproximava-me, sem te tocar, mas à distância suficiente para me
reconheceres, à distância suficiente de tudo o que ainda não te foi permitido
esquecer.
Os dias foram passando na ausência de ti.
Apenas o teu corpo subsistia ali, mas não eras tu. Nunca saí do teu lado.
Passavas a maior parte do tempo ausente, absorto nos teus pensamentos, num
mundo distante. Distante de mim, distante de nós. Deste nós por que tanto
lutaste, que tanto cuidaste e que agora nos era arrancado desta forma tão vil.
Por vezes, olhavas-me. Ficavas assim a observar-me e a acompanhar um gesto meu.
Talvez isso fosse algo que te pudesse trazer de volta, pensei eu tantas vezes
na minha eterna esperança. Mas ficavas apenas assim. Num corpo que era o teu,
mas que estava vazio de ti. Inanimado, desanimado.
E eu sentia-me tão triste, tão angustiada. A
impotência de não poder fazer nada. Sentia um oco no lugar do coração. Mas
nunca chorava. Nunca. Chegava-me a certeza de que ainda te restavam memórias de
mim. Memórias de aquilo que um dia fomos. Na verdade, nunca me conformei e
permaneci sempre ao teu lado.
Levava-te a passear nos dias de sol, naqueles
em que parecias mais perdido.
Hoje foi o dia mais longo do ano. Uma sexta
feira de um intenso azul. Um azul que fazia lembrar o mar quando ainda éramos
nós e íamos passear juntos. Deitávamo-nos à sombra dos pinheiros mansos...
Mas hoje, ficámos apenas sentados, assim
durante muito tempo, junto ao rio. Nem sei precisar quanto tempo passou. Eu e
tu, uma aragem invisível e os raios de luz que rasgam a água fria. Não existem
palavras. Apenas intenções. São gritos mudos daquilo que vai ficando por dizer,
palavras outrora proferidas por uns lábios ainda falantes, agora apenas
guardadas dentro de mim. E sei que também dentro de ti.
Viras a tua cabeça na minha direcção, a tua
mão avança na procura da minha, entrelaças os teus dedos nos meus. E, pela
primeira vez em muito tempo, uma lágrima surge no meu olhar. Torna o meu mundo
desfocado e talvez um pouco mais parecido com o teu. Por breves milésimos de
segundo, pareces reconhecer-me. Tenho quase a certeza. Mas não passa de uma
ilusão. Volta aquele olhar confuso que devolve uma incerteza que não reconheço.
Talvez esta tenha sido a última vez, talvez
nunca mais vejas o meu rosto, agora um pouco diferente daquilo que te lembras
devido ao pesar dos anos. Tal como os meus dias, também os meus olhos
escureceram e já não guardam o brilho que iluminava o nosso passado.
Amanhã, todas a memórias serão apagadas e não
te lembrarás mais dos escassos momentos em que me voltaste a ver.
No passado,
dizias que eu era o teu anjo. Hoje sei que sou apenas o teu fantasma. Alguém
que continua ali, pacientemente à tua espera para quando voltas a esta
realidade. Quem me dera poder ir ter contigo, a esse teu mundo. Encontrar-te
para voltarmos a ser nós. Quem me dera poder exorcizar os teus fantasmas...
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