23 maio, 2013

Caixa de Música


Acordei com um sentimento desconfortável. Um vazio no peito que era tão familiar e que, ao mesmo tempo, renunciava a todo o custo. Nos últimos tempos, era demasiado vulgar sentir-me assim. Sentia-me incompleto. A tristeza colava-se a mim pelo lado de dentro e acompanhava-me na maior parte dos meus dias. Sentia que andava há demasiado tempo atrás de coisas que fugiam de mim. Ou, devido à minha apatia, nem me reconheciam, quase como se eu não existisse, como se eu fosse invisível.
Naquele dia, decidi sair de casa. Com esforço, mas com um único objectivo. Comprar uma caixa de música, daquelas muito pequenas com uma manivela de lado. Era apenas o motivo para sair, caso contrário ficaria ali o dia todo a ver as horas passar naquele vazio imenso. Um marasmo criado por mim, mas que no fundo detestava.
Saí para a rua, precisava de ar. Estava muito sol, contrariamente ao meu estado de espírito. Quase que me sentia irritado por isso. Mas sabia que precisava mesmo de ir, de disfarçar o que sentia cá dentro com o que pudesse encontrar lá fora.
Respirei fundo e saí, de repente, para custar menos e para não dar lugar a mais hesitações. Olhei para ambos os lados da rua e decidi ir a pé, vagueando pelas ruas desta cidade. Tinha a mente aberta e o que encontrasse seria bem recebido por mim. Precisava de coisas novas.
Caminhei durante algum tempo, meio desnorteado, sem ainda saber muito bem se sequer deveria ter mesmo saído.  Parei numa esplanada de um dos muitos jardins de Lisboa para beber um café. Podia ser que me trouxesse alguma lucidez.
Foi aí que a vi, sentada num banco, de costas para mim. Sob aquela imensa árvore, com uma expressão sereníssima, contemplava o mundo que a rodeava, como se de uma paisagem se tratasse. As pessoas passeavam despreocupadas com os seus cães. Casais de namorados sentados sobre a relva entrelaçavam envergonhadamente as mãos. E ela, ali sozinha, estendia o seu olhar em profundidade até ao limite do rio.
Ainda não tinha sequer vislumbrado totalmente a sua face, mas senti uma vontade imensa em abordá-la. Não fui. Achei despropositado e decidi seguir o meu caminho.
Às vezes, acontece-me imaginar pequenas histórias com as pessoas que se cruzam comigo na rua. No sentido de materializar os meus devaneios, aproximo-me e no momento em que a intenção de falar surge, elas esfumam-se no ar e desaparecem. Essas pessoas fazem apenas parte de um cenário que não existe e se deve deixar como está. Não interferir no desígnio dos deuses. Enfim...
Por momentos, reencontrei-me com  a realidade e vi algumas pessoas a entrar para um prédio velho. Parecia devoluto. À entrada um letreiro: “Vestido Sem Côr”. Comprei bilhete e entrei também. Não sabia ao que ia, mas era precisamente isso que procurava, a incerteza do que estava para vir.
Por um corredor demasiado estreito, fui conduzido a uma pequena sala com algumas cadeiras expostas aleatoriamente. Sentei-me no chão. Pairava um cheiro viciado, morno, entre o álcool de uma noite retardada e a humidade das paredes. Estava apreensivo, mas decidi esperar mais um pouco. E eis que se acende um foco no centro daquele palco improvisado e entra ela, a rapariga que vi sentada no banco do jardim.
Era um monólogo que falava de um amor há muito perdido no tempo. A rapariga era pequena e tinha a doçura de uma criança. Mas trazia mágoa na voz e a força das suas palavras, a intensidade com que as proferia, parecia fazê-la crescer e num instante fiquei rendido.
A sua expressão corporal captava a atenção dos demais e a delicadeza das suas mãos ilustrava aquilo que ia transmitindo, alternando entre gestos meigos ou bruscos consoante o seu desejo.
Dei por mim a pensar que tinha saído para a rua para me abstraír do que estava a sentir e, naquele momento, naquele espaço que parecia tão improvável, tudo aquilo de que fugia era-me agora atirado em cara. Parecia de propósito. Pensei que realmente as coisas não acontecem por acaso. Lentamente, deixei-me levar e os meus olhos ficaram cobertos por um véu. Involuntariamente, cobri a cara com as mãos, tentando esconder as lágrimas que iam escorrendo. E foi naquele momento que percebi que tinha que mudar a minha vida. Parar de saltar de um lado para o outro e começar a construir algo ali mesmo, nesta cidade. Esta luz única tinha que significar algo e sabia que era ali que tinha que continuar.
Aplaudi e saí... ainda mais perdido do que quando entrei.
Continuei a andar sem sentido pelas ruas estreitas e encontrei uma pequena feira. Algum artesanato e coisas em segunda mão compunham o espaço e as pessoas sorridentes convidavam a espreitar as suas bancas. Atentei, procurei, perguntei e consegui. A minha pequena caixa de música. “La vie en rose” – essa recordação de ti. Porque era esta a música que tão bem cantavas entre fados e outros choros. Guardei-a como se de um tesouro se tratasse. Era um bocadinho de ti que poderia guardar só para mim, sem que tu sequer pudesses saber. Assim poderia girar a pequena manivela e ter de novo aquele momento só para mim. Reminiscências das noites em que te contemplei sem nunca ter tido a coragem de declarar o meu amor.
Regressei a casa e, apesar de ter cumprido o meu objectivo, continuava com aquele sentimento estranho. Um vácuo no peito. Afinal, tinha estado sempre sozinho e em casa ninguém me esperava. Ninguém com quem partilhar aquela tarde, aquele momento tão meu, mas que assim perdia todo o sentido. Sem partilha, não valia mesmo a pena. Encolhi os ombros, resignado. Afastei a vontade de chorar, aquela angústia que insistia em não me largar, e abri uma garrafa de vinho. Tinto. Alentejano. A par de um maço de cigarros era a minha companhia. Nesta e em tantas outras noites. Adormeci assim, ao som da caixa de música, contemplando os desenhos formados entre o reflexo do copo de vinho, uma vela trémula e o fumo que se estendia até ao tecto. Abandonado à minha própria consciência, pesada pela responsabilidade de nada fazer para mudar a minha condição. Num esgar de loucura, lembro-me de ter cuspido as palavras: “Tenho que abandonar o medo de crescer...”.