26 junho, 2012

Mundos Mudos


Paralelo #2 - daqui

Logo pela manhã, chego à entrada do teu quarto, aquele que um dia foi nosso. Entreabro a porta, que precisa de arranjo e, como já é habitual, range. Range o suficiente para te acordar. Tens o olhar meio perdido, talvez pelo sono, ou talvez não me consigas vislumbrar porque estou em contraluz. Ficas parado durante algum tempo, como que para ter a certeza da minha presença e eu permaneço imóvel para não te assustar. Disseram-me que é melhor assim. Olhas-me com uma incerteza estranha, como se a imagem que vês parecesse focar e desfocar alternadamente, sem te dar tempo para conseguires precisar o que vês, sem te dar tempo de me reconheceres. Foi assim nas primeiras vezes, nas primeiras manifestações, naquelas em que nem eu queria acreditar. Aproximava-me, sem te tocar, mas à distância suficiente para me reconheceres, à distância suficiente de tudo o que ainda não te foi permitido esquecer.
Os dias foram passando na ausência de ti. Apenas o teu corpo subsistia ali, mas não eras tu. Nunca saí do teu lado. Passavas a maior parte do tempo ausente, absorto nos teus pensamentos, num mundo distante. Distante de mim, distante de nós. Deste nós por que tanto lutaste, que tanto cuidaste e que agora nos era arrancado desta forma tão vil. 
Por vezes, olhavas-me. Ficavas assim a observar-me e a acompanhar um gesto meu. Talvez isso fosse algo que te pudesse trazer de volta, pensei eu tantas vezes na minha eterna esperança. Mas ficavas apenas assim. Num corpo que era o teu, mas que estava vazio de ti. Inanimado, desanimado.
E eu sentia-me tão triste, tão angustiada. A impotência de não poder fazer nada. Sentia um oco no lugar do coração. Mas nunca chorava. Nunca. Chegava-me a certeza de que ainda te restavam memórias de mim. Memórias de aquilo que um dia fomos. Na verdade, nunca me conformei e permaneci sempre ao teu lado.
Levava-te a passear nos dias de sol, naqueles em que parecias mais perdido.

Hoje foi o dia mais longo do ano. Uma sexta feira de um intenso azul. Um azul que fazia lembrar o mar quando ainda éramos nós e íamos passear juntos. Deitávamo-nos à sombra dos pinheiros mansos...
Mas hoje, ficámos apenas sentados, assim durante muito tempo, junto ao rio. Nem sei precisar quanto tempo passou. Eu e tu, uma aragem invisível e os raios de luz que rasgam a água fria. Não existem palavras. Apenas intenções. São gritos mudos daquilo que vai ficando por dizer, palavras outrora proferidas por uns lábios ainda falantes, agora apenas guardadas dentro de mim. E sei que também dentro de ti.
Viras a tua cabeça na minha direcção, a tua mão avança na procura da minha, entrelaças os teus dedos nos meus. E, pela primeira vez em muito tempo, uma lágrima surge no meu olhar. Torna o meu mundo desfocado e talvez um pouco mais parecido com o teu. Por breves milésimos de segundo, pareces reconhecer-me. Tenho quase a certeza. Mas não passa de uma ilusão. Volta aquele olhar confuso que devolve uma incerteza que não reconheço.

Talvez esta tenha sido a última vez, talvez nunca mais vejas o meu rosto, agora um pouco diferente daquilo que te lembras devido ao pesar dos anos. Tal como os meus dias, também os meus olhos escureceram e já não guardam o brilho que iluminava o nosso passado.
Amanhã, todas a memórias serão apagadas e não te lembrarás mais dos escassos momentos em que me voltaste a ver. 
No passado, dizias que eu era o teu anjo. Hoje sei que sou apenas o teu fantasma. Alguém que continua ali, pacientemente à tua espera para quando voltas a esta realidade. Quem me dera poder ir ter contigo, a esse teu mundo. Encontrar-te para voltarmos a ser nós. Quem me dera poder exorcizar os teus fantasmas...

25 junho, 2012

Lusco Fusco

Cheguei a casa numa tarde quase noite. O relógio ditava a noite, mas a luz era de final de tarde. Aquele lusco fusco, que não me deixa ver bem e que é uma parte do dia de que não gosto particularmente, desta vez deixou um agradável sabor. As andorinhas voavam e piavam desalmadamente fazendo razias a tudo o que encontravam pelo caminho. A cor morna dos últimos raios de sol pintava as fachadas dos prédios. Os candeeiros de rua acendiam-se devagar. Não se via vivalma. Nem carros arrastando-se pelo asfalto. Nada. Parecia um cenário de um filme. Havia apenas um silêncio estranhamente confortável. Até abrandei o passo. Parecia algo entre o real e o onírico.
A vontade em ir para casa não era nenhuma e pensei em alterar a trajectória e ir até ao jardim. Mas a luz começava a escassear e decidi adiar este desejo. Sorri e continuei a caminhar sentindo o vento quente ainda a queimar o rubor das faces. 

15 junho, 2012

Desde Pequena


Sempre foste assim. Desde pequena. Sei que és boa pessoa, porque não suportas injustiças. És confrontada e, mesmo sabendo que tens razão ou que não fizeste mal nenhum, tremes que nem varas verdes. Chega-te a dar a volta à barriga. Isso só acontece a quem sente as coisas de forma genuína. Mas não quebras, manténs-te erguida. Lutas, chegas-te à frente. Defendes os justos e os injustiçados. Morres por dentro perante pessoas tacanhas e mesquinhas. Revolta-te que a dor de uns possa ser o prazer dos outros. Continuas a lutar, mesmo sabendo que possas ser incompreendida. Sabes que te sentirás melhor se te levantares e falares. Porque não suportas que esses nós te fiquem presos na garganta. Não te escondes, não viras costas, não te resignas.
Defendes quando sabes que tens que defender. Calas quando sabes que os outros se podem defender por si próprios. Sabes reconhecer quem é e quem não é. Sempre foste assim. Desde pequena. Mesmo que possas sair prejudicada, continuas a fazê-lo. Nunca foste de passar a mão pelo pêlo de ninguém só porque fica bem. Nunca te juntaste a rebanhos. Preferes ser a ovelha negra do que ir contra àquilo que defendes só porque é socialmente conveniente. E levas porrada tantas vezes... Às vezes, com tanta força e tão consecutivamente que nem sabes de onde elas vêm. Mas é inevitável. Cais, levantas-te, sacodes as calças e segues em frente. Continuas a ir para a frente de batalha, de peito aberto e coração na mão. A alma exposta para quem a quiser ver, para quem a souber compreender. Mesmo que assim, vulnerável, possa ser magoada muito mais facilmente. Corres esse risco. Uma e outra vez. Caramba!
Há quem te admire. Há quem te deite abaixo, pelo simples prazer de ver o outro cair.
Há quem caminhe ao teu lado, pois pensa da mesma forma que tu. E, no fundo, te reconhece. Não adianta tentar modificar a matéria de que as pessoas são feitas. E tu... Sempre foste assim. Desde pequena.


12 junho, 2012

A mente dos justos



Penso naqueles que ficaram pelo caminho. Quisera eu ser igual a tantos outros e libertar-me daquilo que me toma por assalto. Mas não consigo ter essa insensibilidade, superada pela mágoa que me enche o peito. Não podendo lutar por aqueles que perdi por via da morte, tento fazê-lo pelos que perdi por outras causas. São aqueles que se vão sem qualquer justificação, sem que consiga perceber o que os infligiu. Os mesmos que continuam a sorrir noutros lugares, a brindar na companhia de outros olhares.
Nunca caminharás sozinha”, ouvi eu tantas vezes. Custa mais, porque sei que estas palavras foram proferidas de forma genuína. Tenho a certeza.
Pedi desculpa por erros que não cometi, pois não podia sequer admitir a possibilidade de vos ter magoado. Corri atrás, da única forma que me foi possível, pois jamais me foi permitida uma aproximação.
Consegui perceber que esta guerra não era minha. Foi nessa altura que me calei. Decidi esperar que os dias de raiva ficassem para trás e que alguma clareza pudesse iluminar a mente dos justos. Mas nada aconteceu… Apenas o vento trouxe algumas palavras que não chegaram ao destino de forma clara e distinta. Palavras que contrariam as acções, ou a ausência destas. Chorei onde outrora sorri…
Hoje, possivelmente pela última vez, defendi aqueles que penso ainda valerem a pena. Hoje, mais uma vez como tantas outras, levantei-me e falei. Incompreendida, mas não resignada, fui alvo de palavras tristes de quem jamais terá a capacidade de entender o essencial.
O essencial é invisível aos olhos” e nem todos conseguem aceder ao que lhes é invisível. Faltam-lhe as ferramentas necessárias, a abertura de espírito. Também não os julgo, todos temos limitações e não podemos ser todos iguais. Mas mesmo que para estes eu possa ter sido uma pedra no sapato, que seja relembrada por dizer sempre o que penso. Que eu me tenha destacado por ter tido sempre essa coragem.
E agora, ao caminhar sozinha, sinto um vazio dentro de mim. Uma espécie de gosto amargo e despido de sentido. Aquilo que tenho para partilhar, vai ficando pelo caminho sem quem o suporte, vai se desfazendo como tantas outras coisas em que deixei de acreditar.


05 junho, 2012

dos sonhos


Ao percorrer esta estrada, cheia de curvas estreitas, vou perdendo um pouco de mim. Vou deixando escapar por entre os dedos os sonhos que em mim habitaram. Ficaram lá no passado, perdidos entre ilusões que já não consigo vislumbrar. Tão disformes que já nem me consigo lembrar de que matéria são feitos. Vão perdendo a força que tinham outrora, dando lugar a cruas realidades que nunca desejei. Visões amargas que compõem o caminho, mas que não quero guardar para mim. Dizem que fazem parte da pessoa em que eu me vou tornar. Fazem parte de um todo que sou eu. Mas eu não quero ser esse todo. Prefiro ser um nada aberto a um mundo cheio de possibilidades em que os pesadelos são postos de lado.


  
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.
À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Álvaro de Campos

02 junho, 2012

Vestido sem cor



Não cometerias nenhuma imprecisão ao não conseguires especificar a cor do meu vestido. Porque, nesse fim de tarde, era apenas da cor que mo quisesses despir. Foi nisso que pensei quando cuidadosamente o escolhi, mesmo sabendo que dificilmente o desejo iria surgir.
Foste-me buscar a casa. Anunciaste que tinhas uma surpresa para mim e eu esperei em ansiedade que não fosse nada grandioso. Ia-me custar que te continuasses a esforçar tanto por aquilo que ambos já sabíamos perdido.
A minha mão vazia e despida seguiu na procura da segurança da tua. Uma segurança disfarçada e que nunca senti, mas que desejei e incessantemente procurei no aconchego do teu abraço.
Chegámos ao destino e não pude deixar de sorrir. Tinhas preparado algo realmente especial. Confesso que deixei à porta a tristeza que sentia e, por momentos, consegui relembrar o porquê de me ter apaixonado por ti.
Mas essa tristeza, essa mágoa que tinha e que deixei apenas a uns passos de distância, caminhou ao longo do soalho escuro de madeira corrida e descansou sobre a toalha da mesa, entre mim e entre ti. Entre este nós que era agora desfeito e confirmado na forma doce com que ainda contemplavas os restos da minha beleza. Aquela que ainda reconhecias em mim.
Por entre a luz trémula das velas, que tentavam romantizar o amor perdido, consegui disfarçar a lágrima que surgiu no meu olhar um pouco inebriado ao tomar consciência das conversas que já não surgiam e das mãos que já não se tocavam.
Senti que querias falar. Querias muito falar sobre algo que provavelmente não estaria bem resolvido dentro de ti, algo contra que lutavas mesmo perante tantas evidências. Mas as palavras prendiam-te a fala. Engasgavam-te. Era como uma luta quase patética entre o teu coração (esse que já não era meu) e a tua razão (essa que nunca entendi). Luta que não me atrevi a interromper. Era uma guerra que não me pertencia e que acontecia tragicamente num mundo onde, na verdade, nunca habitei. Um mundo que criaste e que me descrevias tantas vezes da forma mais doce, como uma melodia. Um mundo utópico onde me esforcei para entrar, porque o admirava como uma menina que vive na ilusão de um conto de fadas. Esse mundo que desdobravas em pequenos e grandes desejos, tão teus, em que te permitia fantasiar ao desnudar o meu corpo de um vestido sem cor.
Ao sair do restaurante, senti um frio cortante, um frio estranho que vinha de dentro. Colocaste o teu casaco sobre as minhas costas, ao invés de me abraçares. Aí percebi que jamais irias mudar. Encolhi os ombros e puxei o teu casaco contra a minha pele. O casaco emanava o teu perfume. Foi assim que o senti pela última vez.
Parei e entreguei-te um presente. Um livro que tinha comprado em tempos, quando ainda tudo fazia sentido. Não queria correr o risco de ficar com ele para voltar a encontrá-lo mais tarde num recanto qualquer, como aqueles pequenos pedaços de realidade que insistem em voltar para nos relembrar um passado que queremos distante.
Começa a chover. Ao contrário do normal, cai a direito. Para oblíquos já bastam os sentimentos que nos atravessam o peito e nos cortam o ar, pensei. A chuva cai a direito e ilustra as fachadas dos prédios em pinceladas que me fazem lembrar a tua caligrafia. Parece que de repente todas as paredes estão cobertas com as palavras que tantas vezes me dedicaste. Imortalizadas assim à vista de todos.
Entramos no carro. Deito a cabeça no teu colo. Fecho os olhos na esperança que voltes a brincar com o meu cabelo, que nele entrelaces os teus dedos, que destapes o meu pescoço na procura de uma réstia de inocência e que a desfaças na ternura de um beijo.
Mas é uma espera vã, que confirmo ao abrir os olhos e ao ver que estás embrenhado no livro que te dei. Ao ver que a noite continua escura e dói de novo. Questiono como nunca me soubeste ler, a mim, como nunca conseguiste discernir o que era importante, como nunca soubeste definir prioridades. E a tua, naquele preciso momento, deveria ter sido a de me envolveres nos teus braços. Fecho os olhos de novo, desta vez com força, com o intuito de me esconder. No fundo, não quero estar ali. Não daquela forma.
Concentro-me na chuva e no seu som metálico, mas o silêncio é rasgado pela tua voz embriagada quando me lês um excerto do livro. As palavras que dizem uma coisa estão impressas no teu tom que espelha precisamente o seu contrário. Afinal, também tu reconheces no que isto se tornou. E, incontornavelmente, beijas-me como se fosse a última vez. Um beijo como tantos outros, pois nunca nos queremos despedir definitivamente.
Saio do carro, levando comigo o coração pesado e o teu cheiro impregnado em mim. Hesito. Apresso o passo. Julgo ouvir-te a chamar por mim. Será? Fica a dúvida, pois nem sequer me atrevo a olhar para trás. Não é essa a imagem que quero guardar de ti, a imagem de te ires embora.
Fica tu com a minha imagem desfocada pela distância e desbotada pelas lágrimas depositadas no vestido sem cor.